sábado, 14 de março de 2009

Reflexão sobre "O Inspetor Geral" de Meyerhold

Não montem minhas peças como estão escritas, transformem-nas.
MAIAKOVSKI

Antes de O Inspetor Geral, montei vinte espetáculos que nada mais eram do que experimentos para O Inspetor Geral.
MEYERHOLD

Por LN

Talvez quando Maiakovski sugeriu que transformassem suas peças, ele estivesse querendo dizer que o texto não pode abarcar todas as vicissitudes de uma idéia teatral e que, por isso, o encenador deve, na verdade, captar, através do texto, o todo que não está nele explícito, transformando a peça naquilo que em sua essência ela realmente é. “Transformar”, sob esse prisma, significa impregnar a peça de sua essência, de sua verdade, chegando cada vez mais ao âmago dela mesma, do que ela simplesmente é.

Ao levar ao palco O Inspetor, Meyerhold conseguiu transferir para o espaço cênico não só esse texto específico, mas toda obra e alma gogoliana. Ele materializou, em suas coreografias cênicas regidas por partituras musicais, noções abstratas que residem nos textos de Gógol – como a do vazio que permeia a vida humana interna e externamente ou a sutileza do fantástico. O ser humano convertido em “coisa” humana que, tal como uma marionete, é manipulado por mãos invisíveis. E como essa coisa humana já não sabe mais como agir, fica paralisada quando se percebe enquanto “coisa” ao ver seu reflexo no espelho. Khlestakov dança em cena – e é ele mesmo essa mão, esse espelho de duas faces, esses dedos inescrupulosos que conduzem o baile de figuras ocas que antes mal se movimentavam, mas que se empanturram de voracidade ao perceber que já tem para onde levar, afinal, o “nada” que as absorve. Khlestakov dá as coordenadas. Khestakov é o encenador de uma peça grotesca. E o que Meyerhold fez foi perceber esse jogo, essa trapaça, o teatro dentro do teatro – ao qual Gógol recorreu várias vezes – e fazer o mesmo que Khlestakov: transformar seus atores em bonecos perfeitamente manipulados, limitados em seu subjetivismo, acorrentados a uma formalização que, sobretudo, potencializou suas ações, o vigor em cena – e, sem receios, vestir a carapuça do protagonista. Meyerhold é, dessa forma, o próprio Khlestakov. O encenador de uma nova comédia. O maestro de uma sinfonia onde cada qual tem um papel, toca um instrumento diferenciado em harmonia com os demais, pé-ante-pé, até que toda essa orquestração culmine em uma grande sinfonia e o regente se retire repentinamente, deixando os músicos, dependentes de um guia, petrificados diante da verdade: eles não são nada. Ou melhor: são como animais, ratos famintos, que seguem hipnotizados alguém que segura um apetitoso pedaço de queijo, sendo capazes de se desfazer de qualquer valor moral e humano em nome de uma posição aparente, de um título de “Personalidade Importante” ou de “Conselheiro de Estado” – diria Gógol. Trata-se da vida posta pelo avesso; e Gógol, sem dúvida, clamava pelo avesso das aparências: o sentimento real, a emoção verdadeira, o amor fraternal e, nesse sentido, transformava esse mundo que vislumbramos embasbacados e do qual somos impelidos a participar, à mercê de uma força maior, em mero contorno superficial. A profundidade desaparecia – mesmo por que, para ele, a mediocridade imperava em um atoleiro no qual viviam personagens perfeitamente verossímeis como os de O Inspetor Geral. O absurdo, o fantástico, o grotesco era exatamente o que o escritor via – assim como muitas vezes nós também detectamos a inutilidade total de determinados aspectos do contexto social, aos quais, invariavelmente, são conferidas dimensões colossais.

Como aqueles que cercavam Khlestakov eram vazios, Meyerhold também deveria esvaziar seus atores, objetificá-los, transformando-os em seres mecanizados, reféns das normas sociais e da artificialidade de personalidades à deriva em um oceano de egos.

Enquanto Khlestakov se utilizou da lábia profícua e da presença de espírito para ludibriar os habitantes da pequena cidade e conduzi-los rumo ao “espelho”, Meyerhold se utilizou da biomecânica para fazer de seus atores personagens gogolianos, hiperbólicos em certos aspectos e, nesse sentido cru, grotescos. Caricatos por que isentos de qualquer virtude; vazios porque abdicam do que há de melhor em si mesmos e, sobretudo, prontos para executar uma “farsa”, dançar uma valsa.

O grande encontro à revelia do tempo se deu dessa forma: Gógol precisava de um Khlestakov no comando de seu espetáculo, muito embora não tivesse muita certeza disso, e Meyerhold, com o passar do tempo, matou a charada. Mais uma vez, poderíamos dizer – e talvez sem estar consciente disso – Gógol estava pregando uma peça. Pelo o que podemos apreender da trajetória do dramaturgo, em suas escapadas misteriosas e em sua vida idem, ele também tinha muito dos trapaceiros que criou. Khlestakov, esse anti-herói de inúmeras facetas, chegava onde fosse para “seduzir” as pessoas e mostrar, para as mesmas, o que lhes habitava de mais infame e inominável. Gógol fazia o mesmo por meio da literatura.

Esse encontro, no entanto, percorre a morada celeste – e não há muito mais o que se possa dizer a respeito e que já não se tenha dito, já que o teatro é dependente do tempo, das impressões do momento, do lugar. Mas, sem dúvida, O Inspetor Geral de 1926 compartilha daquele espaço com as autênticas obras primas, independente do suporte que utilizem. Sejamos, portanto, amantes devotados dessa arte que irrompe as barreiras mundanas e emana a mais pura expressão de amor.