segunda-feira, 10 de agosto de 2009

TOLSTOI, BRECHT E OS CAMINHOS DA DESUMANIZAÇÃO

Em um extenso ensaio em que confronta a obra de Tolstói à de Dostoiévski, o crítico literário George Steiner ressalta a importância da “metafísica do artista” que, como um pano de fundo do qual ele não abre mão, está onipresente em sua obra e “antecipa-nos sobre as técnicas de sua arte”. Nesse sentido, o crítico acrescenta que as peças de Brecht, por exemplo, “são representações, através de eventos imaginários, da mitologia política e econômica do marxismo”. Ao passo que, no caso de Tolstói, a obra se assenta sobre pilares religiosos, sendo o cristianismo (em parte por ele concebido) o leito sobre o qual navegam, como barcos pouco à deriva, suas tramas.

O russo Liev Tolstói e o alemão Bertolt Brecht, assim, partilhavam de um ideal visivelmente comum: entendiam que a arte deveria servir para algo que não o mero entretenimento, ou, citando Brecht, “um mero número de hipnotismo barato destinado a amortecer a consciência dos espectadores”. Tolstói “condenava l’art pour l’art como sendo a estética da frivolidade” e ambos prezavam, sobretudo, pela eficácia didática de seus trabalhos como mote de transformação social. Neste ensaio, entretanto, não me cabe analisar se de fato há qualquer arte que se preste puramente à arte, seja lá o que isso for, uma vez que, dentre outros aspectos, a postura também envolve uma reação às rédeas impostas à criação; ou se, de outra forma, a arte genuína já nasceria naturalmente “engajada”, enovelada à sociedade, uma vez que toda obra de arte seria, afinal, produto de um meio, nascida no âmbito das contrações e da inevitabilidade de um “parto normal” – e, nesse rastro, propensa à luz, ao clarão da vida, ao esclarecimento. Não é à toa que, opondo-se aos adeptos do Proletkult, “que reduziam todo valor estético ao mais rudimentar conteúdo político e social”, Trotski afirmou:

(...) Isso não significa o desejo de dominar a arte por meio de decretos e prescrições. É falso que só consideramos nova e revolucionária a arte que fala do operário. Não passa de absurdo dizer que exigimos dos poetas apenas obras sobre chaminés e sobre uma insurreição contra o capital. O lirismo pessoal tem incontestavelmente o direito de existir na nova arte, por menor que seja sua esfera de ação. Ninguém imporá nem se atreverá a impor aos poetas uma temática. Escrevam então tudo o que lhes vier à cabeça.
E ainda:
Seria pueril pensar que as belas-letras burguesas possam abrir brechas na solidariedade de classe. O que Shakespeare, Goethe, Púchkin e Dostoiévski darão ao operário será, antes de tudo, a imagem mais complexa da personalidade, de suas paixões e sentimentos. (...) O operário, afinal, se enriquecerá.
Sobre o marxismo e a cultura artística:
Nem sempre se podem seguir somente os princípios marxistas para julgar, rejeitar ou aceitar uma obra de arte. Esta deve ser julgada, em primeiro lugar, segundo suas próprias leis, isto é, segundo as leis da arte. Mas só o marxismo pode explicar por que e como, num determinado período histórico, aparece tal tendência artística.

Ao encalço do raciocínio de Trotski, é óbvio pensar que, quando desprovida de sua espontaneidade (ou liberdade de concepção), a arte deixa de ser arte para virar outra coisa qualquer. Adorno, por sua vez, localiza com mais precisão e brilhantismo a que “produto” simuladamente artístico Brecht certamente se referia – àquele proveniente da Indústria Cultural, servente do capital e destinado às massas, cuja função é, além de alienar o homem de sua verdadeira condição, inibir a auto-reflexão do espírito. Esse aparte, portanto, pode dar ensejo à análise sobre a desumanização que aqui pretendo circunscrever, tendo como matéria-prima a peça Um homem é um homem de Bertolt Brecht e o conto A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tosltói.

A saída no outro
A morte de Ivan Ilitch, um dos contos mais conhecidos do autor russo, relata a história da vida de um homem que, a começar pelo título do conto, o leitor desde o início sabe que vai morrer. O que importa para Tolstói, então, é o “como”: como ele viveu, como ele vai morrer e, por fim, deixar subentendida a relevância desse processo – pois é ele que, em sua linearidade, vai impedir o acesso de Ivan a si mesmo. “Chegar”, portanto, torna-se puro pretexto para que possamos refletir acerca do caminho percorrido.
A história começa com a notícia da morte do personagem e, como em O estrangeiro de Camus, trata-se de uma contingência que incomoda seus colegas de trabalho apenas no que tange a aspectos burocráticos. Alguns vêem no cargo que ele deixa vago a possibilidade de ascender profissionalmente; outros pensam em ir ao velório para cumprir uma mera formalidade; e a maioria, simplesmente, em um rompante de egocentrismo, sente-se aliviada por não estar no lugar do defunto. Desde esse início, trágico menos pelo acontecimento da morte do que pelo que ele suscita, Tolstói alimenta a curiosidade do leitor sobre que espécie de mundo Ivan Ilitch pertencia e de que forma a iminência da morte vai fazer com que, tomando uma distância crítica, impelido por um “estranhamento” de caráter brechtiano, ele vislumbre um novo mundo que até então não imaginava existir. Um mundo sobretudo humano que, por sua vez, desvela a terrível desumanidade sobre a qual pairou a suposta vida de Ivan. Nesse ponto, ganha corpo o problema da desumanização que, respaldada em contextos diferenciados, irá nortear tanto a literatura de Tolstói quanto a dramaturgia de Brecht.
Tolstói descreve a vida de Ivan como a existência de um corpo burocrático, funcional em todas as esferas, cujos olhos quando miram o céu só vêem “superiores hierárquicos”. Uma espécie de peça da máquina social, que não perde por um momento a consciência de seu dever, sem questionar nada que esteja à margem desse claustro. Casa-se para continuar representando um papel que recebeu de bom grado, e quando lhe interceptam as desavenças do matrimônio, ele trata de afastá-las o quanto pode, uma vez que não as compreende. Em seu coração trafegam apenas os vícios do ego, e é sobre eles que Ivan se equilibra e alegra-se: na propriedade, na inveja, na ruína alheia, no orgulho, e, de quebra, no que ele julga ser melhor para si. Na peça O Inspetor Geral ou no conto O Capote, o também russo Gogol submerge esse tipo de realidade em um paroxismo grotesco, imprimindo-lhe um quê de fantasia: ali, um homem se transforma em um capote e uma falsa autoridade faz dos habitantes de uma província marionetes. Tolstói antecipa as idéias de Adorno contidas no célebre texto sobre a Indústria Cultural, onde o alemão nos adverte para a “liberdade de escolha do sempre igual”, proveniente de um acesso maciço a um consumismo inconsistente. Sobre a nova casa de Ivan Ilitch, por exemplo, o autor escreve:
(...) tudo aquilo que pessoas de certa classe possuem para parecer com as pessoas da mesma classe. A casa de Ivan Ilitch era uma perfeita imitação, mas ele a achava absolutamente original.
Conforme Ivan ascende socialmente, ele trata de se livrar das pessoas que não pertencem a sua classe:
(...) e tranquilamente se livraram dos parentes pobres e dos amigos de poucas posses, que acorriam, cheios de amabilidades, à sala de visitas com pratos japoneses na parede. Não demorou que tais pobres-diabos deixassem de visitá-los e os Golovin ficaram sossegadamente recebendo somente a nata da sociedade.
Sim, Ivan Ilitch não faz a menor idéia do quão profunda e imprevisível pode ser a vida. E acredita que ela seja mesmo esse emaranhado de bens e cacoetes adquiridos no tempo. Ele vive em um mundo encantado, irreal, assim como aqueles que o cercam. A filosofia cristã, no entanto, da qual Tolstoi era adepto, prega que o sofrimento seria uma das formas de conhecer a vida em sua face nevrálgica – e, por conseguinte, aproximar-se de Deus. Em um de seus mais belos contos, “De que vivem os homens”, Tolstói evidencia melhor seu pensamento:
Todos os que vivem, não vivem por bastarem a si próprios, mas pelo amor que há no homem (...) Compreendo que Deus não quer que os homens vivam isoladamente. Por isso não revela a ninguém o que lhe é necessário. Quer que cada um viva para os outros.
O trecho da epístola de São João, que serve de epígrafe para o conto, é ainda mais representativo desse pensamento:
Quando amamos nossos irmãos, conhecemos, pois, que passamos da morte à vida. O que não ama seu irmão permanece na morte.
Esta frase sintetiza muito bem o caminho por onde se embrenhará Ivan Ilitch. Assim, enquanto está às voltas com a mudança para casa nova, ele escorrega de uma escada e acidentalmente choca os quadris com uma superfície sólida. O que aparentemente não é nada, aos poucos vai se descortinando como uma terrível dúvida no mundo até então bem ordenado e previsível de Ivan, fazendo com que, ao vislumbrar o absurdo da morte, a implacabilidade do real, ele comece a desconstruir seu castelo de areia. Os médicos, apesar de fazerem mil e uma conjecturas, não sabem lhe dar respostas simples, como, por exemplo, se a enfermidade que contraiu, “rim flutuante”, é ou não é grave. Tratam-no como um depósito onde parasita uma doença, uma coisa, não como um ser humano aflito com a possibilidade do ocaso e do sofrimento. Ivan vê todo aquele universo do qual foi entusiasta devotado voltar-se abruptamente contra ele. Impossibilitado de representar papeis, ninguém entende os tormentos pelos quais ele passa, sobretudo os membros de sua família – afinal de contas, como todos ao seu redor, ele ocupa apenas funções: pai, marido, juiz. Onde está o ser humano? – essa é a pergunta que permeia as entrelinhas da história, na medida em que todos, como que prisioneiros de algum tipo de feitiço, continuam a procurá-lo somente em razão das máscaras que utiliza. E, como se não bastasse, seu atroz aspecto de moribundo só atrai ainda mais rejeição alheia. Não é a toa que, em um rompante de raiva e lucidez, Ivan se refere a seus pseudo-amigos como “Animais” – ou seja, não humanos. O narrador descreve:
Todos que o cercavam não compreendiam ou não queriam compreender, cuidando que no mundo tudo continuaria como de costume.
(...) A mulher adotara uma premeditada atitude para com a moléstia que o prostrava e persistia em mantê-lo a despeito do que ele pudesse dizer ou fazer.
No tribunal (...) ora tinha a impressão de que o olhavam como alguém que em breve deixará uma vaga; ora os colegas caçoavam afetuosamente da sua hipocondria (...). Schwarz, entre todos, é o que mais o irritava (...), lembrava o que ele próprio fora há dez anos passados.
(...) E sozinho tinha que viver assim à beira do abismo, sem ninguém que o compreendesse e tivesse pena dele.
Contudo, é dentro de sua própria casa que Ivan vai encontrar o ser humano, o Bem, o Bom, a Luz, como alguém que evade da caverna platônica onde até então habitava. Essa válvula de escape é Guerassim, um mujique que trabalha como camareiro para família. Enquanto as pessoas do séquito usual de Ivan se acercavam das condutas as mais grotescas para não se aproximar de seu sofrimento, Guerassim simplesmente se aproxima, como o mais natural e conveniente a fazer, responsabilizando-se por sua higiene.
- Deve ser muito desagradável para você. Desculpe-me. Mas eu não posso me limpar.
- Que desagradável coisa nenhuma – Os olhos de Guerassim cintilaram e ele mostrou a dentadura alvíssima: - O senhor está doente, não está? Portanto não é mais do que a minha obrigação.
Guerassim é um ser humano que deixa vir à tona sua essência – o amor, a bondade e, nesses aspectos, também se comunica profundamente com o ser humano que naquele hiato de angústia é despertado em Ivan. Assim, além da visão de todo um novo mundo que Ivan vislumbra por força do distanciamento, vemos em Guerassim um Gestus Social, no melhor sentido brechtiano do termo – um quadro que pinta, de um lado, a opressão psicológica causada pela sociedade de classes e, de outro, a liberdade compartilhada por indivíduos que, dadas às condições como vivem, estão imunes a lógica burguesa. Ao permitir afetuosamente que Ivan apóie os pés em seus ombros, ele não ameniza só a dor física do patrão, mas sobretudo a dor moral, possibilitando que o leitor e o personagem da história cheguem a “conclusões sobre as circunstâncias sociais que o desumanizaram”. Nesse contexto, a morte se revela para Ivan como a vida, pois é através dela (ou do medo da morte) que ele encontra o amor, o irmão, o fraterno, o humano.
Paulo Bezerra ressalta:
(...) Tolstói é absolutamente implacável com a sociedade burguesa e mostra que a ascensão do indivíduo e sua conseqüente inserção no sistema oficial de valores redunda na sua plena identificação com a sua função, função essa que lhe dá a sensação de poder, de onde lhe vem o prazer de sentir-se na posse de outras pessoas cujos destinos pode decidir com a mesma facilidade com que os donos de Kholstomér denominavam meu ou minha esse ou aquele objeto ou pessoa; em suma, a absorção da função burocrática e de seus condicionamentos psicológicos e ideológicos por parte de Ivan Ilitch apaga a diferença que separa indivíduo e função burocrática e redunda para ele na perda da sua personalidade e da própria condição humana. Fiel à sua concepção poética bem aristotélica (“Fala da tua aldeia que estarás falando do universo!”) da relação entre particular e universal, Tolstói toma o caso particular do burocrata Ivan Ilitch e faz dele uma representação universal do processo de alienação e suas conseqüências para a vida humana. (...) Ivan Ilitch, alto funcionário do sistema jurídico, levara uma vida que imaginava utilíssima mas que descobrirá inútil ante a constatação da fatalidade da morte.

Sem saída
Em um “Um homem é um homem”, Brecht é ainda mais enfático com relação a essa questão, e de fato converte um homem em outro homem, como se a identidade ou a personalidade de um indivíduo, caso perdidas, não o tornassem menos homem sob o prisma do capital – isto é, da sociedade. O homem, nessa comédia, é aquele que cumpre uma função. Por isso, claro, há a correspondência que, ao final do texto, Brecht faz com o teatro – essa arena onde homens revezam máscaras.
A peça conta a história de Galy Gay, um estivador que, de uma hora para outra, e sem colocar qualquer resistência a isso, transforma-se em um soldado. “Este é um homem que não sabe dizer não” – diz um dos personagens, Uria, logo no início da peça, deixando claro – com muita ironia e uma pitada de confusão proposital, que almeja o distanciamento e, por conseguinte, a reflexão –, que Galy Gay é uma espécie de saco vazio que pode servir de depósito ao que for mais conveniente a quem está no comando. Assim, ao perderem um de seus companheiros, Jip, uma tríade de soldados se vê em apuros, necessitando urgentemente de um homem que o substitua. O discurso de Galy Gay é o de alguém que não cultiva qualquer convicção ou valor, o que vai dar ensejo para que aqueles que estão ao seu redor o manipulem a seu bel prazer. É, desse modo, através do apelo a seus instintos mais básicos, como comer e beber, do que lhe aproxima, portanto, de um animal, que Galy Gay se transmuta em Jeraiah Jip, muito embora tenha até que renegar a mulher, manchar por completo a reputação do estivador que um dia foi e, em seguida, enterrá-lo. Por fim, investido da função de soldado, Galy Gay reproduz com perfeição um combatente de guerra.
Não é difícil associar o personagem Galy Gay à idéia de resistência pacífica elaborada por Tolstói. O escritor russo acreditava que a propriedade era a raiz de todo mal existente no mundo e, contra ela e o males que proliferava, como a violência, pregava a resistência pacífica. Stefan Zweig complementa:
Tolstoi visa unicamente uma revolução moral, isenta de violência que, o mais cedo possível nivelamento e pouparia à humanidade uma outra revolta – a sangrenta. Uma revolta vinda da consciência, uma revolta realizada pela renúncia espontânea dos ricos às riquezas, dos ociosos à inação, pela próxima redistribuição do trabalho segundo o sentido expresso por Deus: onde ninguém se ache sobrecarregado para alijar a outrem, e todos tenham somente as mesmas necessidades.(...)
Tolstoi (...) chega à conclusão de que todo o homem que pensa com a moral cristã deve resistir ao Estado quando este lhe exige uma atitude anticristã como o cumprimento do dever militar. Resistir, não pela violência, mas pela resistência passiva e, além disso, afastar-se livremente de toda a atividade que repousa sobre a utilização e exploração do trabalho alheio. (...) aconselha ao homem cristão fugir o mais possível de organizações e instituições, nunca auxiliar a justiça, não aceitar nenhuma função, para conservar a alma pura. (...)

Em “Um homem é um homem”, portanto, vemos dois elementos: a crítica à desumanização de Galy Gay alavancada pela lógica de classes e, talvez, o caminho “passivo” trilhado por um indivíduo rumo a essa “tragédia”, o que pode ser lido, por seu lado, como um contraponto ao pensamento tolstoiano que via na resistência pacífica, e não na revolução armada, uma solução para os problemas sociais. Galy Gay se deixa conduzir pelo aroma dominante, a despeito de qualquer vestimenta humana da qual tenha que abrir mão, muito embora ele não resista à transformação. Ao contrário, aos poucos ele percebe a manobra do poder e, satisfeito, veste a carapuça.

Em História e Consciência de Classe, o filósofo húngaro Georg Lukács dá o devido contorno à idéia que tanto Tolstoi quanto Brecht trazem à baila. Assim, ao que parece, tudo que existe termina e acaba na relação entre os homens. E, se subestimamos o que ocorre neste âmbito em detrimento de outros interesses, mesmo que eles estejam recheados de boas intenções, estamos dando margem para que tudo que existe – ou seja, o homem e a sociedade na qual ele vive – desmorone. Lukács salienta para o fato de que a estrutura da mercadoria transforma a relação entre os homens em uma relação entre coisas. Como a força de trabalho assume a forma de uma mercadoria que ao homem pertence, e, na sociedade governada pelo capital, os valores residem nas coisas, o valor do homem recai, dessa forma, sobre o que ele possui. Por isso é que Galy Gay se desfaz de si mesmo, de sua essência humana: para servir como mercadoria ao sistema instaurado e ter algum valor. E, da mesma forma, Ivan Ilitch percebe que não foi durante toda sua vida mais do que uma coisa, uma mercadoria, e se surpreende, em vias de morrer, com um ser humano de verdade. Talvez a propriedade de si mesmo, ou a consciência da própria humanidade, seja incompatível, como deixam entrever os autores, com a acumulação de bens fomentada pela sociedade burguesa. Ao possuir o alheio, imputando-lhe um sentido de propriedade, o ser humano perder-se-ia.

O processo por que passa Galy Gay parece imitar a própria racionalização do processo de trabalho no qual, como reitera Lukács,

(...) a falta de vontade é reforçada pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa. A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme as leis e que se desenrola independentemente da consciência e sem a influência possível de uma atividade humana.

A personalidade humana é, dessa forma, oprimida, asfixiada, como ocorre com Ivan Ilitch, sem que o sujeito tenha consciência disso:

(...) a objetivação de sua força de trabalho em relação ao conjunto de sua personalidade - que já era realizada pela venda dessa força de trabalho como mercadoria -, é transformado em realidade cotidiana durável e intransponível, de modo que, também nesse caso, a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua própria existência, parcela isolada e integrada a um sistema estranho. Por outro, a desintegração mecânica do processo de produção também rompe os elos que, na produção orgânica, religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho.

Tolstói, anterior a Brecht, ainda trata de diagnosticar a desumanização como um mal do qual o mujique Guerassim, por ser um simples camponês, está livre. Mas Lukács afirma que “com a universalidade da categoria mercantil (...) o destino do operário torna-se o destino geral de toda sociedade”. E Brecht não isenta ninguém desse destino. Ambos, entretanto, (Brecht e Tolstoi) fazem uma associação do que é humano com vida, e do que é desumano com morte. No processo de desumanização, o Galy Gay “cidadão” morre.

O filósofo também observa que a “reificação, no curso do desenvolvimento capitalista, penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais profunda, fatal e definitiva”. Galy Gay, sem dúvida, é o retrato desse processo avassalador, já que celebra o próprio funeral, sem meios de retroceder. Enquanto, por outro lado, ao se defrontar com a morte, Ivan Ilitch, estranhamente, renova as esperanças na vida e no homem, transcendendo o fim na evidência do amor e da humildade. Talvez tenha faltado a Brecht essa réstia de esperança, essa visão entre prédios do éden que, ainda que distante, nos faz lutar por dias melhores.

Bibliografia:
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2006.
BRECHT, B. Um homem e um homem. Ed. Autentica, 2007.
TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac & Naify, 2000.
STEINER, George. Tolstói ou Dostoievski - Um Ensaio Sobre o Velho Criticismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
TOLSTÓI, Liev. A morte de Ivan Ilitch. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1980.
TROTSKI, Leon. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BRECHT, B. O teatro dialético: ensaios. Seleção e introdução de Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967. Coleção Teatro Hoje. Série Teoria e História, vol.8.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Zweig, S. O Pensamento Vivo de Tolstoi, Soleção: Biblioteca do Pensamento Vivo. Ed: Livraria Martins, SP, 1960

sábado, 14 de março de 2009

Reflexão sobre "O Inspetor Geral" de Meyerhold

Não montem minhas peças como estão escritas, transformem-nas.
MAIAKOVSKI

Antes de O Inspetor Geral, montei vinte espetáculos que nada mais eram do que experimentos para O Inspetor Geral.
MEYERHOLD

Por LN

Talvez quando Maiakovski sugeriu que transformassem suas peças, ele estivesse querendo dizer que o texto não pode abarcar todas as vicissitudes de uma idéia teatral e que, por isso, o encenador deve, na verdade, captar, através do texto, o todo que não está nele explícito, transformando a peça naquilo que em sua essência ela realmente é. “Transformar”, sob esse prisma, significa impregnar a peça de sua essência, de sua verdade, chegando cada vez mais ao âmago dela mesma, do que ela simplesmente é.

Ao levar ao palco O Inspetor, Meyerhold conseguiu transferir para o espaço cênico não só esse texto específico, mas toda obra e alma gogoliana. Ele materializou, em suas coreografias cênicas regidas por partituras musicais, noções abstratas que residem nos textos de Gógol – como a do vazio que permeia a vida humana interna e externamente ou a sutileza do fantástico. O ser humano convertido em “coisa” humana que, tal como uma marionete, é manipulado por mãos invisíveis. E como essa coisa humana já não sabe mais como agir, fica paralisada quando se percebe enquanto “coisa” ao ver seu reflexo no espelho. Khlestakov dança em cena – e é ele mesmo essa mão, esse espelho de duas faces, esses dedos inescrupulosos que conduzem o baile de figuras ocas que antes mal se movimentavam, mas que se empanturram de voracidade ao perceber que já tem para onde levar, afinal, o “nada” que as absorve. Khlestakov dá as coordenadas. Khestakov é o encenador de uma peça grotesca. E o que Meyerhold fez foi perceber esse jogo, essa trapaça, o teatro dentro do teatro – ao qual Gógol recorreu várias vezes – e fazer o mesmo que Khlestakov: transformar seus atores em bonecos perfeitamente manipulados, limitados em seu subjetivismo, acorrentados a uma formalização que, sobretudo, potencializou suas ações, o vigor em cena – e, sem receios, vestir a carapuça do protagonista. Meyerhold é, dessa forma, o próprio Khlestakov. O encenador de uma nova comédia. O maestro de uma sinfonia onde cada qual tem um papel, toca um instrumento diferenciado em harmonia com os demais, pé-ante-pé, até que toda essa orquestração culmine em uma grande sinfonia e o regente se retire repentinamente, deixando os músicos, dependentes de um guia, petrificados diante da verdade: eles não são nada. Ou melhor: são como animais, ratos famintos, que seguem hipnotizados alguém que segura um apetitoso pedaço de queijo, sendo capazes de se desfazer de qualquer valor moral e humano em nome de uma posição aparente, de um título de “Personalidade Importante” ou de “Conselheiro de Estado” – diria Gógol. Trata-se da vida posta pelo avesso; e Gógol, sem dúvida, clamava pelo avesso das aparências: o sentimento real, a emoção verdadeira, o amor fraternal e, nesse sentido, transformava esse mundo que vislumbramos embasbacados e do qual somos impelidos a participar, à mercê de uma força maior, em mero contorno superficial. A profundidade desaparecia – mesmo por que, para ele, a mediocridade imperava em um atoleiro no qual viviam personagens perfeitamente verossímeis como os de O Inspetor Geral. O absurdo, o fantástico, o grotesco era exatamente o que o escritor via – assim como muitas vezes nós também detectamos a inutilidade total de determinados aspectos do contexto social, aos quais, invariavelmente, são conferidas dimensões colossais.

Como aqueles que cercavam Khlestakov eram vazios, Meyerhold também deveria esvaziar seus atores, objetificá-los, transformando-os em seres mecanizados, reféns das normas sociais e da artificialidade de personalidades à deriva em um oceano de egos.

Enquanto Khlestakov se utilizou da lábia profícua e da presença de espírito para ludibriar os habitantes da pequena cidade e conduzi-los rumo ao “espelho”, Meyerhold se utilizou da biomecânica para fazer de seus atores personagens gogolianos, hiperbólicos em certos aspectos e, nesse sentido cru, grotescos. Caricatos por que isentos de qualquer virtude; vazios porque abdicam do que há de melhor em si mesmos e, sobretudo, prontos para executar uma “farsa”, dançar uma valsa.

O grande encontro à revelia do tempo se deu dessa forma: Gógol precisava de um Khlestakov no comando de seu espetáculo, muito embora não tivesse muita certeza disso, e Meyerhold, com o passar do tempo, matou a charada. Mais uma vez, poderíamos dizer – e talvez sem estar consciente disso – Gógol estava pregando uma peça. Pelo o que podemos apreender da trajetória do dramaturgo, em suas escapadas misteriosas e em sua vida idem, ele também tinha muito dos trapaceiros que criou. Khlestakov, esse anti-herói de inúmeras facetas, chegava onde fosse para “seduzir” as pessoas e mostrar, para as mesmas, o que lhes habitava de mais infame e inominável. Gógol fazia o mesmo por meio da literatura.

Esse encontro, no entanto, percorre a morada celeste – e não há muito mais o que se possa dizer a respeito e que já não se tenha dito, já que o teatro é dependente do tempo, das impressões do momento, do lugar. Mas, sem dúvida, O Inspetor Geral de 1926 compartilha daquele espaço com as autênticas obras primas, independente do suporte que utilizem. Sejamos, portanto, amantes devotados dessa arte que irrompe as barreiras mundanas e emana a mais pura expressão de amor.